“Ser descontente é ser homem” Fernando Pessoa
Ilustração de Pedro Penilo
“Vamos andando assim-assim, não é verdade?”
A afirmação embebida de interrogações foi lançada ao grupo que tomava a bica matinal, por um sujeito portador de máscara-sorriso-convencional. O senhor António, homem de convicções, detestava as meias-tintas, além do mais não estava nos seus dias, bebeu de um trago a bica-curta, olhou de frente o recém-chegado e disparou:
“Eu estou assim, e o senhor assim está, o que não significa que estando ambos deste modo, estejamos os dois assim-assim. Detesto o chuvisco,
prefiro a enxurrada.”
O homem máscara-sorriso-convencional, apertou o nó da gravata, remexeu-se dentro do casaco, olhou à sua volta, soltou uma amostra de pigarro e quedou-se, enquanto outro dos visados, “virado do avesso”, engasgando-se logo ao primeiro golo de café, não deixou passar o “insulto”:
“Não gosto da vida assim-assim, é o pior que nos pode acontecer. É o indefinido, o não anda nem desanda, o marasmo que arrasta a perda de horizontes, a mornança que atabafa os espíritos. Não é cólica nem diarreia, é prisão de ventre. Um desconforto! Já imaginou o que é um indivíduo, um povo, uma autarquia ou um país assim-assim? Hem! Já imaginou? Se nos dispuséssemos a ficar assim-assim estávamos acabados!”
A máscara virou o sorriso para a porta espreitando a fuga, e o homem achou que as coisas já não estavam assim-assim. Triste ideia a de ter saído de casa!
“Estar assim-assim, é ter perdido as emoções que comandam o gosto ou o desgosto de viver, não estar contente nem descontente, olhar e não ver, comer sem apetite, um desconsolo! Procure colocar-se nessa situação, faça um esforço e diga-me se não é de ficar apavorado. Uma reforma assim-assim dá para ir vegetando, e vegetar é gastar a vida sem interesse e sem emoções, levar uma vidinha que se arrasta por entre o paciência-podia-ser-pior, o se faz favor, o muito agradecido, o desculpe se incomodo. O assim-assim é um mal-estar que nos envolve sem sabermos de onde vem; prefiro a topada.”
Hirto e de sorriso aos pés, o homem não sabia como se desenvencilhar da encrenca em que se havia metido. Aferiu que estava entre gente insatisfeita e balbuciou:
“Mas… um… um governo assim-assim… sempre seria melhor que…”
O empregado de mesa deixou cair a bandeja, e por entre o estardalhaço explodiu um vozeirão:
“O assim-assim é o caminho privilegiado para o ainda pior”.
Fez-se silêncio, e a interrogação surgiu tonitruante.
“E sabe porquê? Porque o assim-assim é a inércia. Sabe o que é a inércia? É o vai para onde te empurram!”
O sorriso rastejou até à porta deixando só o homem já sem máscara.
“Melhor seria ter estado calado.” Concluiu.
“Quando não se escolhe uma trincheira apanha-se de todos os lados.” Cogitou.
O Manuel Caveira, de olho vivo, ouviu, ouviu e sentenciou:
“Estar assim-assim é uma merda!”
Cid Simões
Magnífico texto!
Infelizmente este tipo de histórias repetem-se desde sempre, retratando-as de forma exemplar Fernando Pessoa diz: ” O povo é bom tipo (rapaz).”
e diz mais:
“Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes – não porque neles falte consciência, mas porque neles não há duas consciências”
Textos retirados do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa
Infelizmente este povo anda assim assim.
Todos os dias lhe cortam direitos e chupam-lhes o sangue e eles continuam assim-assim.
Só com o futebol é que não.
O António Caveira tem toda a razão; o assim-assim, ou o assim-como-assim, são uma merda!
Tanto assim é que, a cada dia, a cada jornada de luta, são mais aqueles que escolhem a topada, apesar da sua escolha ser a mais exigente. E é assim, e só assim, que daremos a volta à pantanosa ilusão do “assim-assim”.
E deste modo, outrossim, varreremos o marasmo e a mornaça e assim-sim, então-sim, vamos acabar com tantos “nim”.
Um abraço, bem “topado”!