nada na mão
nada na manga
nada na cabeça.
Ilustração de Pedro Penilo
Expressando-se correctamente, rigor no gesto e na sintaxe, o automobilista relatava o acidente, procurando justificar as razões que o determinaram.
Foi simples, afirmou: “Rolava à velocidade regulamentar, injectei água no pára-brisas, pus a funcionar as escovas, mas o vidro estava tão sujo, tão sujo, tão sujo que derrapei na lama que dele se soltou.“
O polícia observou-o atentamente e entregou-lhe o “balão“; o homem soprou… e nada.
“O senhor derrapou na lama saída do pára-brisas?…” Interrogou pausadamente o guarda. O sujeito, com grande aprumo confirmou: isso mesmo… o vidro estava muito, muito sujo.
O agente foi buscar outro “balão” e o resultado foi igualmente negativo.
Acompanhei o diálogo, apreciei o modo correcto e convicto do automobilista e sorri à expressão atónita do GNR.
Tudo se passava com grande compostura como mandam as boas regras de civilidade.
Vivemos num mundo de faz-de-conta, razão pela qual episódios como este não nos deveriam surpreender.
Sem nada dizer, bloqueado pela singular situação que o ultrapassava, o oficial de trânsito olhou-me com a expressão de quem pede socorro, levando-me a encetar o nosso também estranho diálogo:
– Se nos defrontamos diariamente com o absurdo, não sei por que razão não o admitimos do mesmo modo e com o mesmo à-vontade com que lidamos com a lógica, definindo-lhe regras, dado que o absurdo é já uma constante no nosso dia-a-dia.
– Mas isso seria um paradoxo, retorquiu o polícia ainda mais confuso. Se o absurdo tivesse regras deixava de ser um contra-senso e morria a lógica.
O senhor não reparou, respondi-lhe, que é justamente isso que está acontecendo: matar a lógica promovendo o seu contrário!
“Repare: Nestes dois últimos anos, na Região Autónoma dos Açores foram abatidos dez mil vitelos, por imposição da União Europeia e, entretanto, a “sopa dos pobres” é cada vez mais concorrida porque a miséria alastra como mancha de óleo.”
O guarda sentou-se no guarda-lamas do carro sem nada dizer, e o automobilista sorridente, com um aceno de assentimento, pedia-me para continuar.
Está vendo a lógica a definhar-se, senhor guarda?
“António Mexia recebeu por dia quase 3600 euros, mais do dobro da remuneração-base média mensal do Grupo EDP de que é Administrador Executivo e J. César das Neves, o economista, professor e cronista à boleia da crise intensifica o seu discurso esclavagista afirmando que ‘os portugueses estão dispostos a aceitar atrasos no pagamento de salários para manter o emprego’.”
O automobilista descontrolado de alegria aplaudia, pedindo-me para continuar.
“Os gestores do BCP vão perder 50% dos seus salários de 90mil euros e por presença em cada reunião receberão somente 45mil; o vice-presidente verá reduzidos os 290mil anuais para 144mil e os vogais 150mil, fora alcavalas, e o governo injecta o nosso dinheiro para aguentar a Banca.”
Deliro com a loucura, gosto dos lunáticos e a canalhice exalta-me. Continue, continue! Implora-me o condutor.
“As 100 famílias mais poderosas de Portugal aumentaram em 41% os seus rendimentos. E o desemprego também não pára de aumentar.”
Titubeante, o polícia agarrou no “balão“, soprou e concluiu que tudo estava normal.
O motorista, numa atitude de agradecimento, ofereceu-me um cartão com a seguinte máxima:
“O desemprego é um estado psicológico do trabalhador” (Set./93) Silva Peneda).
Tudo tão sujo!… Tanta lama!…
Cid Simões
Texto fantástico!
Abraço.
…Que pérola companheiro!
Contra factos, qualquer argumento está condenado ao fracasso.
Abraço
Muito bem explicado, para quem ainda não se deu ao trabalho para perceber! Excelente texto.
Abraço
Cid,
Excelente texto. Tudo tão sujo!… Tanta lama!…
# Ludo Rex
Fernando,
Continua a ser vital fundar escolas, na impossibilidade de o fazer com frequência, artigos como este são fundamentais para quem teme o esclarecimento.
A revolução é hoje!
Gosto, de gente inteligente! Belissimo texto.
Cid,
Excelente texto!
Deixa-me adivinhar?
O motorista conduzia um Jaguar e atropelou um “Coelho”, numa auto-estrada concessionada a “empresas hienas”.
Isto dos direitos dos “Animais” tem muito que se lhe diga.
Abraço,
Zorze
Mais que sujo, imundo!
De facto estamos num país numa época de contrasenso onde nos querem convencer da normalidade do absurdo!
Muito bom.
Beijo
Cid
Que bela surpresa, pelo menos para mim.
Sugiro, para quem insistir em descobrir a lógica, que se ponha de cabeça para baixo.
Um abraço
PS: hoje faltei à postagem. Por distracção, ontem convenci-me que teria o dia de hoje para o fazer. Encontro-me em processo de mudança de computador, embora isso não justifique a falha. Pelo facto peço desculpa aos leitores do blog e aos restantes colaboradores.
EXCELENTE!
Ouss